Páginas

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

De coração

Minha mãe tinha um gosto parecido com o meu para decoração. Tanto que eu nunca errei quando dava peças decorativas de presente. Quando eu escolhia perfume, roupa, o risco de ela não usar era enorme. Mas o anjo foi direto para o aparador e está lá até hoje, o Pezão, uma escultura de um homem com pé avantajado, só saiu do lado da vitrola quando quebrou.

Com os meus irmãos era diferente. Uma vez escondi um porta-retrato de gosto duvidoso dado por um deles. Minha mãe não reclamou, não voltou o porta-retrato para o lugar; confessou que também não gostava, que a peça só estava ali para não decepcionar os meninos.
A melhor companheira canina

Porém, uma vez ela errou feio. Colocou um cão de plástico pequenininho virado para a TV, não tem nem cinco centímetros, mas destoa de todo resto. Eu podia jurar que o brinquedo estava no rack por engano. Falei em tom de brincadeira que iria guardar, minha irmã concordou, mas minha mãe... Ah, ela não aceitou, soou como uma ofensa. Disse que nunca podia deixar nada do jeito dela na própria casa. E para me desarmar de vez falou que aquele cachorrinho era a Keka, uma cadelinha que era o xodó da casa e havia morrido há um tempo. Eu e minha irmã concordamos, porém foi impossível conter o riso. A Keka era uma yorkshire de três quilos, o cão de plástico era um cachorro de caça americano e até usava chapéu. A única semelhança era o hábito de assistir TV conosco. Até macho o cachorrinho era.

Toda vez que eu e minha irmã sentávamos no sofá começávamos a rir e o único comentário, quando minha mãe estava ausente, claro, era: É, a Keka. E saber que o cachorrinho foi chegar lá em casa por engano, meu pai juntou vários objetos e mandou em uma caixa pelo correio, ele veio no pacote e nunca foi tão amado pela minha mãe. Era como se fosse um cachorrinho que caiu da mudança.

O tempo passou e minha mãe se foi também. No dia seguinte a despedida, fizemos o mesmo comentário, porém sem nenhum riso. Não tivemos coragem de tirar a Keka dali, o cão de caça não lembrava apenas uma yorkshire mais, carregava momentos com minha mãe, simples, porém que eram nossos com ela. Também não tivemos coragem de desobedecê-la. O cão de caça americano tornou-se a peça mais cheia de significado da nossa decoração e nunca irá sair de frente da TV!

Sobre o texto:
Publicado no caderno especial de decoração do Jornal Agora. Estava guardado, na minha pasta de crônicas inéditas e quando fui revisar as matérias vi que era o momento de publicá-lo. Gosto de escrever sobre o que desejo que nunca se vá, mesmo com as leis da vida. E aí está. 

Outros posts sobre minha mãe e de pessoas que são eternas: 

4 comentários:

FFlora disse...

Parabéns pelo blog (e pelo texto).

Talita Camargos disse...

Valeu, Flávio Flora :)

Raissa Souki O. N.Leal disse...

Talita, adorei o txt! Enquanto lia, alguns objetos iam surgindo em minha mente e atualizando sentimentos e saudades. Obrigada por acordar olhares que andavam adormecidos.Bjokas

Talita Camargos disse...

Como é bom saber que um texto contribuiu de alguma forma. Obrigada pelo comentário, Raissa. Beijos!